As Igrejas Devem Submeter-se às Instruções do Governo Sobre a Pandemia do Coronavírus?

Depois de tantos meses de pandemia pode parecer tarde para comentar sobre o tema; mas recentemente dúvidas começam a surgir, e várias vozes no mundo cristão começam a questionar o cumprimento, por parte das igrejas, das regras governamentais sobre a pandemia, isto é: se igrejas deveriam seguir as instruções do governo sobre o coronavírus ou não. As restrições atuais já afetam profundamente nossa adoração, nossa comunhão, nossas Escolas Dominicais e nosso trabalho de evangelismo. Ninguém gosta delas ou as quer.

Recentemente, um periódico evangélico britânico fez a seguinte pergunta: “Devemos fazer um debate sobre o tema? Será que estamos fazendo a coisa certa? Deveriam as igrejas, governadas por Cristo, renderem-se tão facilmente ao Estado, ao reino deste mundo? A pesar de levantar a questão o artigo não a respondeu; mas poderia facilmente tê-lo feito, se somente o escritor tivesse se referido às Confissões de Westminster ou Batista para verificar a posição escriturística. A resposta está lá, em palavras simples, mas cuidadosamente elaboradas.

O erro do escritor do artigo foi o de simplificar demais a questão da oposição entre os dois reinos, o de Deus e o do mundo. Sua opinião era que a igreja não deveria mudar suas atividades a pedido do mundo. Certamente o mundo não pode ser colocado acima o domínio que Cristo deve ter sobre sua igreja.

Os leitores podem estar cientes da existência de uma igreja bastante conhecida nos EUA, mais precisamente na Califórnia, que passou a pensar da mesma forma que o autor do artigo que citei; e, há alguns meses, reabriu os cultos presenciais no prédio da igreja, sem uso de máscaras faciais ou distanciamento social durante a quarentena e o lockdown. O pastor da igreja referida articulou o mesmo argumento: Acaso não existem dois governos, o mundo e a igreja; e não deveríamos estar submetendo nossa obediência ao governo de Cristo, e recusar permitir que nossa adoração seja interrompida?

Deixe-me ler uma ou duas frases da Confissão de Fé.

“Deus, o Senhor supremo e Rei de todo o mundo, ordenou que houvesse magistrados civis [o que inclui governos, reis, e assim por diante], para lhe estarem sujeitos e governarem sobre o povo, para sua própria glória e o bem público… requer-se de nós a obediência, no Senhor, a todas as coisas lícitas ordenadas pelas autoridades, não apenas por causa da punição, mas como dever de consciência. Devemos suplicar e orar pelos magistrados e todos os que estão investidos de autoridade…”

Os dois textos-chave de prova para essas palavras na Confissão são Romanos 13.1-7 e 1 Pedro 2.13-18, e há outros ainda. Deus implementou o governo e a ordem civil para que todos obedeçam, incluindo seu povo. Ele colocou no coração da raça humana, mesmo em seu estado decaído, o desejo por governo e por ordem, e Ele dá poder às autoridades civis. Em questões relacionadas ao corpo, lei e ordem, defesa e bem público, incluindo a saúde pública, Deus governa seu povo redimido junto com o resto do mundo por meio do governo civil. O governo é um agente da governança de Deus. Portanto, é uma séria e exagerada simplificação dizer: só existe a igreja e o mundo. Falar assim é ignorar os dois grandes textos bíblicos referidos.

Há muitos anos atrás, conheci um empresário rico que, embora fosse cristão, tinha muito orgulho do fato de que não pagava corretamente seus impostos. Ele me disse que informou erradamente seus ganhos aos seus contadores para que eles reduzissem seus impostos; e ele reconheceu que era ilegal o que tinha feito. Naturalmente, eu o questionei a respeito dessa atitude, mas ele já tinha sua defesa pronta. “Sinto-me livre para fazer isso”, disse ele, “porque os impostos são a lei de César”. Ele se convenceu de que os cristãos não estão sob o Estado, mas sob Cristo. Este foi, certamente, um caso extremo, mas a questão aqui é bem clara: para questões de ordem pública, bem público e saúde pública, “toda alma”, diz Paulo em Romanos 13, está sob César.

Sim, é claro, na Bíblia há a imagem de dois reinos e nós acreditamos e defendemos isso. Cristo governa sua igreja diretamente em questões de crença doutrinária, o conteúdo e a forma da adoração, conduta moral, disciplina e ideologia. Mas isso não é tudo, porque também somos ensinados nas Escrituras que Deus governa os assuntos civis por meio das autoridades civis, e os cristãos estão sob elas.

A conhecida “Questão 109” do puritano Richard Baxter (em seu texto Eclesiologia Cristã, de 1665) foi reimpressa recentemente por várias revistas cristãs; e essa “Questão” representa a posição cristã tradicional. “Deveríamos nos ausentar das reuniões (cultos) da igreja no Dia do Senhor se os magistrados as proibirem?” De modo geral, as respostas dadas a “Questão” são: “Se o magistrado, por um bem maior, proíbe as assembleias da igreja em um período de peste, ataque de inimigos estrangeiros, ou fogo, ou necessidade semelhante, é um dever obedecê-lo”. Por outro lado, ”Se os príncipes proíbem profanamente as sagradas assembleias e o culto público… como uma forma de renúncia a Cristo e à nossa religião, não é legal obedecê-los formalmente assim”.

A suspensão das reuniões públicas feita pelo governante deve ser imparcial, aplicar-se igualmente a toda a sociedade, não isolando igrejas, e deve ser por um período de tempo apenas, ou será percebido como restrição de fé e perseguição à igreja; e assim teremos que tomar uma posição firme. Esta sempre foi a posição da maioria dos protestantes.

Na Inglaterra, estamos de volta aos cultos presenciais (desde de julho de 2020, embora com algumas pausas); mas bastante limitados, porque não podemos cantar, usamos máscaras e devemos manter o distanciamento social; mas essas regras se aplicam a toda a sociedade, e não somente à igreja. Na verdade, voltamos aos cultos presenciais muito antes de ser permitido que outros grupos se reunissem, como os esportistas por exemplo. Acredito que o último fim de semana de agosto foi a primeira vez que uma multidão de pessoas (e eram apenas 2.500 pessoas), teve permissão para assistir a uma partida de futebol em um estádio em nosso país. E o governo obtém uma receita financeira considerável com esses eventos esportivos; e você esperaria que o governo estivesse se esforçando para apoiar o retorno dos es esportes e campeonatos nacionais mais do que as igrejas.

Outros interesses nacionais também tiveram uma experiência mais difícil do que as igrejas. O governo, por exemplo, divulgou recentemente que, se a retomada da educação, com aulas presenciais nas escolas e universidades, causar um “pico” de Covid-19 na população, os bares terão que fechar novamente para reequilibrar a luta contra o vírus. Mas não houve menção (nesta fase) sobre as igrejas serem fechadas também. Não parece haver ação injusta contra as igrejas e a proclamação do Evangelho.

Como cristãos, estamos sujeitos a limites de velocidade no trânsito, restrições para poder fazer alguma construção e até mesmo quarentenas e lockdowns emergenciais, assim como o resto da sociedade. Agradecemos a Deus por existirem maneiras alternativas para proclamarmos a Palavra de Deus e ministrar às pessoas individualmente, neste curto prazo.

Se as restrições ligadas ao coronavírus se tornarem irrazoáveis, longas demais ou desiguais, essa será a hora de protestar. Do jeito que as coisas estão em toda parte, igrejas não deveriam se comportar como uma comunidade mimada. Não estamos sofrendo um estado de guerra, como na Segunda Guerra Mundial, quando todos os homens com menos de 41 anos estariam longe de casa agora, por até cinco anos, envolvidos na guerra. Não temos que entrar secretamente em catacumbas para adorar a Deus escondidos, como os crentes na antiguidade. O que somos chamados a fazer, em comum com todas as outras pessoas, é algo que podemos suportar, e com o que podemos lidar, e louvar e agradecer a Deus.

Romanos 13.1 diz: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores”. Já foi sugerido que este é um dever dado aos indivíduos, e não necessariamente dado às igrejas; mas esta é uma distinção impossível. “Toda alma” aplica-se a todos, salvos e não salvos. Paulo diz a respeito do Estado:  “…porque não há autoridade que não venha de Deus”. Lembramos que, na época em que Paulo escreveu, os governantes eram idólatras, déspotas e tiranos, como Nero. No entanto, ele diz: ”…quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus”. Isso é muito sério; e assim pensamos duas vezes, até muitas vezes, antes de ir contra o Estado. Paulo vai mais além, ao dizer: “…e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação”. O grego diz julgamento, disciplina ou castigo (da parte do Senhor).

Um pouco mais adiante, lemos (no versículo 5): “Portanto é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo (por medo de punição civil), mas também pela consciência.” Nossas consciências devem estar tão sintonizada que percebemos que estamos desobedecendo a Deus se desobedecermos ao Estado, em questões salutares.

Existem exceções nas Escrituras, todavia. Se as autoridades públicas tentam impedir completamente a proclamação da Palavra, então obedecemos a Deus e não aos homens. Se eles tentarem mudar nossas doutrinas e nos dizerem que devemos ensinar favoravelmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou a teoria da evolução a nossos filhos, devemos obedecer a Deus e não aos homens. Se eles interferem nos padrões morais ou nas doutrinas da Palavra ou na proclamação do Evangelho, nós obedecemos a Deus ao invés dos homens. Nos capítulos 4 e 5 de Atos, vemos os apóstolos tomando uma posição muito clara e firme sobre tais assuntos.

1 Pedro 2,13 diz: “Sujeitai-vos, pois, a toda a ordenação humana por amor do Senhor.” E então Pedro diz (vs. 15): “Porque assim é a vontade de Deus, que, fazendo bem, tapeis a boca à ignorância dos homens tolos.” Há pessoas fora da igreja que estão prontas a vilipendiar se a igreja não cumprir as restrições. “veja só aquelas pessoas egoístas”, elas dirão, “eles não se importam com a quantidade de pessoas infectadas ou quantas podem morrer.” O Senhor diz que não devemos dar essa brecha aos incrédulos. “Honrai a todos… temei a Deus. Honrai ao Rei.”

Quão sucintamente Calvino apresenta o caso em seu comentário sobre 1 Timóteo 2.1-2

“Ele [Paulo] menciona expressamente [que se faça oração pelos] reis e outros magistrados, porque, mais do que todos os outros, eles podem ser odiados pelos cristãos. Todos os magistrados que existiam naquela época eram inimigos jurados de Cristo; e, portanto, este pensamento poderia ocorrer a eles, que não deveriam orar por aqueles que dedicaram todo o seu poder e toda a sua riqueza para lutar contra o reino de Cristo, cuja extensão é acima de todas as coisas a mais desejável. O apóstolo encara essa dificuldade e recomenda expressamente aos cristãos que orem por eles também. E, de fato, a verdade da depravação dos homens não é uma razão pela qual a ordenança de Deus deveria deixar de ser amada. Consequentemente, visto que Deus nomeou magistrados e príncipes para a preservação da humanidade, por mais que eles fiquem aquém da designação divina, ainda assim não devemos por isso deixar de amar o que pertence a Deus e de desejar que aquilo que Ele estabeleceu continue em vigor. Esta é a razão pela qual os crentes, em qualquer país em que vivam, não devem apenas obedecer às leis e ao governo dos magistrados, mas também em suas orações suplicar a Deus por sua salvação.”

Extraído da revista: The Sword & Trowel 2020, issue 2.
 

Dr. Peter Masters é pastor Batista Reformado do Metropolitan Tabernacle de Londres, na Inglaterra.


Tradução: Pr. Ábner Eliel Araújo

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